13 Fevereiro 2011
No mesmo momento em que a renúncia de Mubarak se expandia como fogo entre os manifestantes, os militares brigavam pelos ministérios. Em alguns países, isso se chama de “golpe de Estado”.
A reportagem é de Robert Fisk, do The Independent, e foi publicada no jornal Página/12, 12-02-2011. A tradução é de Anne Ledur.
De repente, todos começaram a cantar. E a rir, e chorar, e gritar, e rezar, se ajoelhando na rua e beijando o pavimento sujo na minha frente, dançando e agradecendo a Deus por livrá-los de Hosni Mubarak – um gesto generoso, pois foi sua coragem, mais que a intervenção divina, que livrou o Egito de seu ditador. Era como se cada homem e mulher tivesse recém-casado, como se alegria pudesse apagar todas as décadas de ditadura, e dor, e repressão, e humilhação, e sangue. Para sempre se conhecerá como a Revolução Egípcia de 25 de janeiro – o dia em que começou a revolta – e para sempre será a história do povo que renasceu.
O velho tinha finalmente caído, entregando o poder não ao vice-presidente, mas – curiosamente, mesmo que os milhões de revolucionários não violentos não estivessem em condições de avaliar isso ontem à noite – ao conselho do Exército do Egito, a um marechal de campo e a um montão de brigadeiros e generais, o que garante, por enquanto, tudo pelo que os manifestantes pró-democracia tinham lutado e, em alguns casos, morrido.
E até os soldados estavam felizes. No mesmo momento em que a renúncia de Mubarak se expandia como fogo entre os manifestantes fora da estação de televisão estatal no Nilo, a cara de um jovem oficial explodiu de alegria. Todo o dia, os manifestantes lhes diziam que eram irmãos. Bom, veremos se é verdade.
Falar de um dia histórico de alguma maneira não expressa a verdade do que a vitória de ontem à noite realmente quer dizer para os egípcios. Com mero poder de vontade, com coragem frente à odiosa segurança de Mubarak, com a compreensão de que às vezes tem que lutar pra derrubar um ditador com algo mais que palavras e Facebooks, com o mesmo ato de brigar com punhos e pedras contra policiais com armas e gás lacrimogêneo e balas de chumbo, conseguiram o impossível: o fim – e devem rogar a seu Deus que seja permanente – de quase 60 anos de repressão, 30 deles de Mubarak. Os árabes, difamados, mal falados, abusados racialmente no Ocidente, tratados como atrasados e sem educação por muitos dos israelenses que queriam manter o governo, às vezes selvagem de Mubarak, haviam levantado, abandonaram seu medo e tiraram o homem a quem o Ocidente quer como um líder “moderado”, que faria o que lhe determinasse pelo preço de 1500 milhões de dólares por ano. Não são só os europeus do Oriente que podem tolerar a brutalidade.
Esse homem – menos de 24 horas antes – havia anunciado, em um momento de loucura, que ainda queria proteger seus “filhos” do “terrorrismo” e que ficaria nas funções, fez a vitória de ontem muito mais valiosa. Quinta à noite, os homens e mulheres que exigiam democracia no Egito balançavam seus sapatos no ar para mostrar sua falta de respeito pelo decrépito líder que os tratava como crianças incapazes de dignidade política e moral. Logo, ontem, simplesmente fugiu a Sharm el Sheik, um lugar de descanso estilo ocidental sobre o Mar Vermelho, um lugar que tem tanto em comum com o Egito como tem com Marbella ou Bali.
Assim que a Revolução Egípcia estava ontem à noite nas mãos do Exército do país, uma série de declarações confusas e contraditórias do Exército indicavam que os marechais de campo, os generais e os brigadeiros do Egito estavam competindo pelo poder em ruínas do regime de Mubarak. Israel, de acordo com várias proeminentes famílias militares do Cairo, estava tratando de persuadir Washington de que promovesse seu egípcio favorito – o ex “chefe” de inteligência e vice-presidente Omar Suleimán – para a presidência, enquanto que o marechal de campo Tantawi, o ministro da Defesa, queria que seu chefe do Estado Maior, o general Sami Anan, governasse o país.
Quando Mubarak e sua família foram enviados da Sharm el Sheik, ontem à tarde, só se confirmou que sua presença era mais irrelevante que provocativa. As centenas de milhares de manifestantes na praça Tahir cheiravam a mesma decadência de poder e até Mohamed el Baradei, o ex-inspetor de armas da ONU e ambicioso prêmio Nobel, anunciou que o “Egito ia explodir” e que “o Exército devia salvá-lo”.
Os analistas falam de uma rede de generais dentro do regime, mesmo que bem mais uma teia de aranha, uma série de altos oficiais competitivos cuja própria fortuna pessoal e privilégios zelosamente guardados foram ganhos por servir o regime cujo líder de 83 anos agora aparece tão demente como senil. A saúde do presidente e as atividades dos milhões de manifestantes pró-democracia no Egito são, portanto, menos importantes que as selvagens lutas internas do Exército.
Mas mal se desfizeram do presidente e o alto comando do Exército já está formado por homens da velha ordem. A maioria dos oficiais de categoria mais alta do exército foram absorvidos dentro do núcleo do poder do regime. Durante o último governo de Mubarak, o vice-presidente era um general, o primeiro ministro era um general, o vice-primeiro ministro era um general, o ministro da Defesa era um general e o ministro de Interior era um general. Mubarak mesmo era comandante da Força Aérea. O Exército levou Nasser ao poder. Apoiou o general Anwar Sadat. Apoiou o general Mubarak. O Exército introduziu a ditadura em 1952 e agora os manifestantes creem que se converterá na agência da democracia. Haja esperança.
Portanto – tristemente – o Egito é o Exército e o Exército é o Egito. Ou pelo menos nisso quer acreditar. Por isso deseja controlar – ou proteger, como reiteram constantemente os comunicados do Exército – os manifestantes pedindo que Mubarak se vá. Mas as centenas de milhares de revolucionários democráticos do Egito – furiosos pela negativa de Hosni Mubarak de abandonar da presidência na quinta-feira à noite – começaram seu próprio golpe militar no Cairo ontem, transbordando a praça Tahrir, não só em volta do prédio do Parlamento, mas ao lado do Nilo, onde se encontra a televisão estatal e as centrais de rádios, e por onde passa a estrada que leva à luxuosa residência de Mubarak no caro subúrbio de Heliopolis. Milhares de manifestantes em Alexandria chegaram às mesmas portas de um dos palácios de Mubarak, onde a guarda presidencial entregava água e comida em um dócil gesto de “amizade”. Os manifestantes também tomaram a praça Talaat Haab no centro comercial do Cairo, enquanto que centenas de acadêmicos das três principais universidades da cidade marchavam para Tahrir no meio da manhã.
Depois da fúria expressa durante a noite pelo paternalista e profundamente insultante discurso de Mubarak – quando falou longamente sobre ele mesmo e seu serviço na guerra de 1973 e se referiu só vagamente aos deveres que supostamente deveria reatribuir a seu vice-presidente, Omar Suléiman – as manifestações de ontem começaram em meio ao humor e uma extraordinária civilidade.
Se os seguidores de Mubarak esperam que sua quase suicida decisão de quinta-feira provocaria a violência nos milhões de manifestantes pela democracia em todo o Egito, estavam equivocados: em volta de Cairo, os jovens homens e mulheres que eram a base da Revolução Egípcia se comportaram com a moderação que o presidente Obama pediu ontem. Em muitos países, queimaram edifícios do governo depois do discurso desmedido presidencial; na praça Tahrir, leram poesia. E logo escutaram que seu desgraçado antagonista tinha caído.
Mas o verso árabe não ganha revoluções, e cada egípcio sabia ontem que a iniciativa não estava mais com os manifestantes que com a remota, ligeiramente demente figura do ex-ditador. Pois o futuro corpo político do Egito está composto por até cem oficiais, cuja antiga fidelidade a Mubarak foi agora abandonada totalmente. Um comunicado militar de ontem de manhã – lido, curiosamente, por um apresentador civil da TV estatal – pedia “eleições livres e justas”, acrescentando que as Forças Armadas estavam “comprometidas com as demandas do povo que deveria “reassumir a sua forma normal de vida”. Traduzido à linguagem civil, isso significa que os revolucionários deveriam se acomodar enquanto um círculo de generais divide os ministérios do novo governo. Em alguns países, isso se chama “golpe de Estado”.
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Mubarak cai e Egito festeja sua derrocada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU